Uma Segunda Opinião Sobre a Língua Negra

[Na metade de dezembro de 2001, Craig me enviou esta análise da Língua Negra. Apesar de eu não concordar necessariamente com todas as visões aqui apresentadas, achei que a análise era certamente boa o suficiente para ser publicada, e perguntei a Craig se eu poderia colocá-la no Ardalambion como uma ‘segunda opinião’ sobre a Língua Negra. Ele gentilmente me autorizou a usá-la.]

Esta é minha própria reconstrução da Língua Negra, a partir do mesmo corpus usado pelo artigo do Ardalambion, Órquico e a Língua Negra, mas com uma conclusão diferente. Apesar de eu estar ciente de que Tolkien odiava a Língua Negra, também estou ciente de que este é o seu modo de retratar Sauron como um personagem mais complexo – o próprio Tolkien era um ávido criador de idiomas, e mesmo a Língua Negra, criada por Sauron como um idioma auxiliar para seus oficiais, é o único idioma construído conhecido, em toda a Terra-média.

CORPUS

Aqui está o corpus de todas as citações da Língua Negra:
Ash nazg durbatulûk, ash nazg gimbatul,
ash nazg thrakatulûk agh burzum-ishi krimpatul
Um anel para a todos governar, um anel para encontrá-los,
um anel para a todos trazer, e na escuridão aprisioná-los
 

Uglúk u bagronk sha pushdug Saruman-glob búbhosh skai! Esta citação possui duas traduções diferentes. Por razões que serão discutidas abaixo, usarei esta: Uglúk para o poço de esterco com a imundície fedorenta de Saruman, tripas de por- co, gah!

LÉXICO

A partir disto, eu forneço o seguinte léxico de palavras na Língua Negra, atestadas ou implícitas por formas atestadas. As formas não atestadas são indicadas por asteriscos. O Ardalambion indica especificamente as palavras da "Língua Negra dege- nerada" falada pelos orcs em Lugbûrz. Eu não o faço, pelo fato de que eu acho que seja mais provável que eles falem com uma gramática pobre do que não estarem sequer razoavelmente próximos do modelo de Sauron. Todas aquelas palavras no vocabulário do Ardalambion que não aparecem em nenhuma das citações são incluídas aqui com seus significados; já faz muito tempo que li os livros para que eu possa afirmar que a lista é completa.

aghe
*at – desinência que indica forma de verbo ‘de intenção’. Aqui eu discordo do Ardalambion, por não achar razoável dizer que um idioma que deveria que ser simples (para os orcs não-filólogos) usasse um sufixo infinitivo. É muito mais provável que um idioma auxiliar usasse o radical nu como o infinitivo.
ashum
*bagesterco
bagronkpoço de esterco (provavelmente bagronk)
*bûbporco
bûbhoshtripas de porco (provavelmente bûbhosh)
burzescuro (No nome de localidade Lugbûrz é colocado um mácron, mas não na inscrição do Anel. Tratarei a versão da inscrição como correta, uma vez que isto produzirá os tengwar corretos para ‘burzumishi’ no TengScribe.)
burzumishina escuridão (provavelmente burzumishi)
*durbgovernar
*dug – desinência que indica forma de particípio do verbo
*gimbencontrar
globimundície
gûlespírito maligno a serviço de Sauron
*hairaça
*hoshtripas
*ishiem (posposição)
*krimpaprisionar
*homem
lugtorre
*ologtroll
ologhaitrolls
nazganel
nazgûlEspectro do Anel
*pushfedor
pushdugfedorento (provavelmente pushdug)
*ronkpoço
shae (liga substantivos ao invés de frases, para as quais agh é usada); com
*sharvelho
sharkûhomem velho (provavelmente shar)
skai – [um interjeição] (A tradução "fossa" mantém "skai" como a forma em português; a tradução "poço de esterco" usa "gah!". A diferença provavelmente é de que "gah!" será compreendida pelos falantes de português, ao contrário de "skai".) O Ardalambion prefere chamar isto de uma expressão de desprezo, mas eu digo que as opiniões que ele está expressando como tais estão mais próximas de "náusea".
snagaescravo
*thraktrazer
upara (preposição, mas provavelmente usada como tal de forma errônea e provavelmente é uma posposição na forma padrão da língua.)
*ûktodo(s)
*ul-los (Apesar do resto da Língua Negra que é conhecido não diferenciar número, de modo que este provavelmente é um pronome genérico de terceira pessoa.)
*um – um sufixo similar ao –ão português.
*urukorc
urukhaiorcs

ANÁLISE DO CORPUS

Notas sobre a provável gramática da Língua Negra, aproximadamente na ordem em que eu trabalhei sobre vários aspectos:

No nome Lugbûrz "torre escura", o adjetivo sucede o substantivo. Contudo, na praga orc, o adjetivo precede o substantivo – possivelmente um exemplo da forma "degenerada" da Língua Negra. Porém, há uma chance razoável de que um nome de localidade estivesse em um estilo diferente, mais poético. A forma "adjetivo e depois substantivo" é sustentada por palavras compostas como nazgûl (nazggûl, anel-espectro = Espectro do Anel). Assim, podemos concluir que o adjetivo antes do substantivo é a norma. Discordo nesta conclusão da do Ardalambion, que ignora o caso de nazgûl.

Posposições são usadas na inscrição do Anel, como em burzumishi "na (em + a) escuridão". Porém, o orc usa u como uma preposição. Esta provavelmente é a forma degenerada cultivada em sua cabeça feia, assim como *ishiburzum se encaixaria igualmente bem na poesia. Isto nos leva à conclusão de que, se ele estivesse falando a Língua Negra padrão, o orc começaria com *"Uglûk bagronk u" ao invés de "Uglûkubagronk".

Não há a presença de quaisquer artigos. Isto significa que a Língua Negra, como o russo, não tem necessidade de indicar os substantivos pela sua definição, nem indicá-los pelo número em muitos casos (o que não deixa de ser razoável).

A palavra "nazgûl" parece ser usada tanto como singular e plural; assim, vemos que, no único caso no qual vislumbramos ambos, não há indicador de plural. Vou supor que esta seja a norma na Língua Negra, assim como também não há artigos para indicar número. Dessa forma, ul não significa realmente "-los" mas, ao invés disso, é um pronome genérico de terceira pessoa. Contudo, ele é traduzido como "-los" na inscrição do Anel, onde sua primeira aparição é sinalizada com ûk, que o qualifica especificamente como plural.

"Sharkû" e "ishi" apresentam problemas. Todas as outras palavras, com exceção dos nomes de raças, são monossilábicas, a menos que estejam em compostos. Todas elas se dividem organizadamente na forma CVC. "Sharkû" se divide em *shar ou em *shark. Concluo, portanto, que significa "homem", e shar significa "velho". Entretanto, nos é deixado exatamente uma palavra, que é dissílaba e não é composta. "Ishi" deve se dividir em *ishi mas, infelizmente, o conceito de algo estando em outra coisa não se desfaz. Assim, somos forçados a nos perguntar se nossa análise de "ishi" está correta (mas nenhuma outra se apresenta, de modo que devemos assumir que ela esteja correta pela falta de uma alternativa).

POÇO DE ESTERCO VS. FOSSA

Existem duas traduções da praga orc. Irei me referir a elas pela primeira palavra satisfatória, que é a tradução da palavra com- posta "bagronk". O artigo do Ardalambion sobre a Língua Negra usa a versão da "fossa"; usarei, ao invés disso, a do "poço de esterco".

"Fossa" oferece uma tradução mais antiga, mas na verdade não há uma boa razão para escolhê-la. Uma vez que eu aprecio o trabalho lingüístico investigativo de decodificação da Língua Negra, "poço de esterco" oferece as seguintes vantagens:

Ninguém antes decifrou a Língua Negra com o uso da versão "poço de esterco".

"Poço de esterco" oferece um padrão regular de adjetivos antecedendo substantivos (bag + ronk). Contudo, há uma confirma- ção independente nos usos de ash nazg "um anel" ao invés de *nazg ash, e nazgûl sobre *gûlnazg, ambas conhecidas como Língua Negra padrão no estilo de Sauron.

Tanto "pushdug" como "bûbhosh" são palavras compostas que se mantém por si mesmas. Portanto, os diferentes significa- dos das outras se tornarão úteis. Na "fossa", bûbhosh provavelmente significa "grande", enquanto que na "poço de esterco" a palavra pushdug significa "fedorento". "Poço de esterco" oferece, assim, uma gramática mais completa (nos dizendo como formar particípios), enquanto que a "fossa" nos oferece uma palavra dissílaba adicional que não pode ser uma palavra compos-
ta.

Por estas razões, escolhi discordar da reconstrução do Ardalambion ao usar a tradução "poço de esterco".

GRAMÁTICA

Para concluir a análise acima, ofereço a seguinte gramática rudimentar e incompleta:

Radicais verbais nus provavelmente são usados para formar o infinitivo. Existem dois sufixos verbais conhecidos. Adicionando –at a um verbo, fornece a intenção (ash nazg durbatulûk significa assim um anel cujo propósito é a todos governar). Esta possivelmente poderia simplesmente ser uma forma subjuntiva, também com outros usos. Para formar particípios presentes, –dug é adicionado. Usarei este também como um tempo progressivo, já que não há nada para sugerir que haja qualquer forma de "ser/estar" na Língua Negra (por que é "imundície de Saruman, tripas de porco" ao invés de algo que significaria "Saruman imundo, ele é tripas de porco"? A versão "fossa" possui o mesmo problema, mas com "push-dug".)

O pronome ul é um pronome genérico de terceira pessoa. Substantivos e pronomes não possuem número, de modo que, para indicar "todos", o sufixo –ûk é usado. Outros sufixos com propósito parecido não são dados.

A Língua Negra usa a ordem subjeito-verbo-objeto, como o português. Esta interpretação, com durbatulûk sendo durbatulûk (onde ulûk é o objeto de durb) é muito mais provável do que a idéia de que objeto seria uma parte do verbo, embora ele seja escrito como se fosse este o caso.

Expressões posposicionais vêm antes do verbo ("burzumishithrakatul", e não "thrakat ul burzumishi") no único caso atestado em que elas ocorrem juntas. Esta pode ser uma característica da gramática da Língua Negra, ou pode ter sido feita para que a inscrição rimasse. Também é possível deixar isto para o estilo pessoal. Prefiro tratá-la como uma característica da gramática, já que não há evidência do contrário e nenhuma razão para supor que ela teria que seguir as normas do inglês (e do português). Ao se produzir gramáticas de idiomas desconhecidos deve-se, é claro, ter cuidado com a poesia.

Expressões posposicionais são formadas ao se colocar a posposição após seu objeto (em oposição às preposições do portu- guês). Entretanto, na fala coloquial órquica, a posposição muda para antes de seu objeto.

Não há artigo. Os substantivos não têm, assim, números indicados inerentemente.

FONOLOGIA

Passemos agora para o sistema sonoro do idioma.

A Língua Negra possui uma estrutura silábica CVC.

Vamos supor por um momento que gh é um único som, ao invés de um g seguido por um h (que seria, enfim, impronunciável).

As seguintes consoantes são atestadas: sh, d, r, b, th, k, m, p, t, l, k, gh, z, g, n, h e s.

Sabemos que o l e o r são pronunciados na parte posterior da boca (similar ao inglês, mas sem exceção) – este é um som que os elfos consideram extremamente desagradável.

Alguns encontros consonantais ocorrem; estes são thr, kr, gl e sk inicialmente, e zg, mb, mp, rz e nk no final. Encontros con- sonantais medianos geralmente resultam de uma composição ou afixação. Quando isto resultar em uma consoante dupla (note que isto inclui coisas como *ghgh) o som se funde.

Provavelmente é razoável supor que exista os sons *dh e *zh sonoros e um *kh surdo, visto que este é um idioma auxiliar e, portanto, provavelmente possui uma fonologia completamente regular. *Dhl (um som difícil de se pronunciar usando um l frontal ou "claro", mas não com o l mais anterior – que pode ser a origem desta pronúncia do l e r na Língua Negra) e zg são, portanto, provavelmente permitidos inicialmente, enquanto que *ls (e possivelmente *rs e *lz) e *ng são permitidos no final *sk. Sendo assim, note que *ng seria como na palavra portuguesa "pingo", onde se pronuncia /ng/ ao invés de /n/.

Existem cinco vogais: a, i, o, u e û. A vogal o é rara mas não desconhecida; e é ausente. É razoável supor que os orcs, alguns deles tendo sido uma vez elfos, considerariam a Língua Negra mais fácil de se aprender se as vogais a, i e o fossem como no quenya. Porém, para melhor distinguir as letras û e u, eu estaria disposto a supor que o u é curto em pelo menos uma parte razoável do tempo, enquanto o û é sempre longo.

A outra hipótese razoável é de que o u representa a vogal [u] padrão, e o û é uma vogal anterior arredondada (como o ü ale-  mão), que mais provavelmente faria sharkû ser corrompida para "Sharkey" (Charcote), já que a vogal mais próxima em qual- quer outro idioma da Terra-média é i. [Nota do editor: o idioma sindarin da Terra-média na verdade possui uma vogal  similar ao ü, geralmente escrita y; ex: em yrch "orcs". Mas "Sharkey" deve ser uma forma do westron apresentada na grafia anglicizada, e o westron aparentemente não possui esta vogal.]

Não é insensato supor que, na fala rápida, as vogais se fundem como fazem as consoantes. Assim, eu usaria *sharkûk para "todos os homens velhos" ao invés de sharûk.

Regras para tonicidade não são dadas, assim como não há citações suficientes na Língua Negra nos livros para permitir tal coisa. Portanto, este aspecto é um mistério para nós, mas uma vez que este é um idioma auxiliar, podemos supor que, quais- quer que sejam as regras, elas são bem regulares.

Vamos verificar novamente que esta é uma fonologia razoável ao calcular o número de monossílabos permitidos (para termos certeza de que não há encontros permitidos dos quais não temos conhecimento, e talvez resolver o mistério de "ishi").

Existem 20 consoantes que podem ser iniciais ou finais. Além disso, há 6 encontros iniciais e 10 encontros finais. Isto nos dá 27 iniciais possíveis (palavras podem começar com vogais) e 31 finais possíveis (elas também podem terminar em vogais). Há cinco vogais, mais dois ditongos (ai e au), para um total de sete. Uma vez que cada raiz possui um de cada, isto nos dá 27 x 6 x 31 palavras possíveis, que resulta em 4.522 palavras raízes monossílabas possíveis, significando que as sílabas acima contam apenas para metade de um por cento das possibilidades. Isto é, de forma significativa, mais do que suficiente, tornando ishi um mistério maior ainda.

CORPUS REVISADO

Enquanto que as palavras estão dispostas um tanto juntas na tradução de Tolkien do tengwar da inscrição do Anel, proponho a seguinte forma, mais dividida:

Ash nazg durb-at ul-ûk, ash nazg gimb-at ul, ash nazg thrak-at ul-ûk, agh burz-um ishi krimp-at ul.

Os hífens foram usados aqui para separar limites morfêmicos dentro das palavras; os verbos foram separados de seus objetos (isto é, durbatulûk -> durbat ulûk). Meus exemplos abaixo usarão este esquema de hifenização, para transformar em anexos padrões da escrita quaisquer pronomes no objeto para o verbo, remover todos os hífens, e usar um hífen para separar posposições das palavras que elas imediatamente sucedem. Contudo, ao usar o coloquialismo órquico de usá-las como prepo- sições, irei separá-las da próxima palavra com um espaço.

Aqui a praga órquica, dividida de forma parecida em suas raízes constituintes e com sua gramática corrigida para o padrão de Sauron e repontuada para seguir as convenções portuguesas:

*Uglûk bag-ronk u sha push-dug Saruman glob, bub-hosh. Skai!

EXEMPLOS DE FRASES

Para testar se esta gramática é razoável, reuni algumas frases de exemplo usando apenas o vocabulário acima. Infelizmente, enquanto é fácil expressar os sentimentos de alguém com este vocabulário, é difícil não falar sobre coisas vis. Há evidentemen- te muito mais palavras que não aparecem n’O Senhor dos Anéis.

Uruk glob ishi krimp shar-kûk.
O orc aprisiona todos os homens velhos na imundície.

Nazgûl ronk ishi thrak olog-hosh sha uruk-bag.
O Espectro do Anel encontra tripas de troll e esterco de orc no poço.

Shar-gûl thrak-dug nazg.
O velho espectro está trazendo o anel.

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